segunda-feira, novembro 11, 2013

A vida é um presente.


A vida é uma puta e depois morre-se. Dizem os compêndios que foi Bertolt Brecht, dramaturgo alemão, o pai da célebre frase, título de uma música na sua “Opera dos três vinténs”, uma peça de 1928. Depois, as referencias são imensas, perdem-se, sucedem-se, sobram: de músicas dos Da Weasel a filmes desconhecidos onde um jovem Patrick Dempsey passa por temerosas dúvidas existenciais, inúmeras são as representações artísticas com queixas sobre os dias que temos que enfrentar antes de que chegue o nosso fim.

A vida é um presente. Não se sabe quem foi a primeira pessoa a dizê-lo. Certamente o avô de alguém, mas também Jack Dawson em “Titanic”, numa magnífica ode ao sentido que existe em viver o dia-a-dia. Já Eleonor Roosevelt defendia o mesmo, sendo-lhe atribuída a frase “today’s a gift, that’s why it is called the present”.  

“La vida es un regalo”. Era também esse o título do livro que María de Villota apresentaria esta segunda-feira, em Madrid. Nele, palavras que resumem uma luta, que transformam um acidente gravíssimo em algo bom, e que nos levam a sentir uma única verdade: às vezes, perder um olho permite-nos ver melhor do que antes.

Os sonhos e o sofrimento andam muitas vezes de mãos dadas. A espanhola soube isso desde sempre. Filha de um ex-piloto de Fórmula 1, cedo quis seguir as pisadas do pai, vivendo com o ruído dos motores e o cheiro a gasolina como pano de fundo da sua infância. As bonecas ficaram penduradas nas estantes, repouso tranquilo para o pó, substituídas pelos karts. Aos seis anos, competiu pela primeira vez. Aos seis anos, conseguiu a primeira vitória. No entanto, cedo soube também que teria que se esforçar o dobro para alcançar esses sonhos. Ser mulher num mundo dominado pelos homens, onde os riscos espezinham as certezas, onde ter talento muitas vezes pode não chegar, eram os obstáculos a superar. Não para si.

Abraçou a luta e subiu a pulso, fazendo uso não do nome mas dos genes. Competiu sempre, em diversas categorias de monolugares, e quase sempre com êxitos. Primeiro na F3 espanhola, depois nas 24 Horas de Daytona, na Euroseries 3000 e na Superleague Fórmula, na qual representou o Atlético de Madrid.  Acumulou records: foi vice-campeã de Espanha na prova Fórmula Toyota (2001), a primeira mulher a participar na WTCC, na Superleague Fórmula e a conseguir a pole position no campeonato Ferrari Challenge (2005), e a primeira mulher espanhola a participar nas 24 horas de Daytona.

Apesar das contrariedades genéticas, das probabilidades quase nulas, dos olhares desaprovadores, María alcançou o seu sonho: em Março de 2012, assinou como piloto de testes da Marussia. O pior chegaria depois, em Julho do mesmo ano, também como ponto de viragem na sua história. Sofreu um acidente durante a sua primeira sessão de treinos no aeródromo de Duxford, no Reino Unido, e viu a cara da morte. O embate fortíssimo contra um dos camiões da equipa provocou-lhe sequelas graves, entre as quais a perda do olho direito e do olfacto, mas a espanhola também no hospital mostrou ser feita de força.

Assimilou a ideia de que o seu aspecto físico mudara para sempre, embora não tenha sido fácil. Perguntava-se quem a iria querer com uma pala, acessórios que entretanto passaram a ser escolhidos detalhadamente e de acordo com a roupa que vestia. Também foi gradual o processo de assimilação do fim da carreira de piloto. “Salvamos-lhe a vida, mas perdeu um olho”, disse-lhe o cirurgião que a operou após o choque. “Você precisa das duas mãos para operar, eu sou piloto e preciso dos dois olhos para conduzir”, respondeu-lhe María, sem aceitar o fim de algo pelo qual tanto lutara, a quebra de um sonho, um guincho de desespero que presumia uma nova vida. Entretanto, numa conferencia de imprensa, revelou ter agarrado a oportunidade: “Apercebi-me de que vejo melhor do que antes. Antes, só via a Fórmula Um. Agora, vejo que estou viva”.

Muitos foram os ganhos que retirou da situação, numa tentativa sã de ver o lado bom de todas as coisas: o respeito que conquistou entre os seus pares, um dos maiores. “Sempre quis o respeito dos meus colegas e nunca o consegui na pista, na grelha da partida. Consegui-o agora”.

Neste espaço de tempo, dedicou-se a causas com três vértices: a dos automóveis, dos quais nunca se conseguiu desligar, a dos doentes, entre quem se via, e a das mulheres, numa luta organizativa que havia já começado em pista. Assumiu novos desafios, porque só soube viver deles: a responsabilidade de ser directora da Escola de Pilotos Emilio de Villota foi a génese, ser Embaixadora do Dia da Mulher e Contra a Violência de Género o lucro, o Premio Honorifico da Universidade Europeia de Madrid um reconhecimento. Acima de tudo, dedicou-se uma causa com um vértice só: o da escrita do livro que, como lição de vida, quis que fosse o seu maior legado.

Um ano e três meses separam-nos do dia daquele acidente que tudo mudou. Este texto deveria ser escrito como apresentação de “La vida es un regalo”. Foi escrito porque a vida é uma puta, a de María foi-o muito, e porque depois se morre. Aos 33 anos, de causas naturais, num hotel em Sevilha, como uma machadada de injustiça poética.

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