A
vida é uma puta e depois morre-se. Dizem os compêndios que foi Bertolt Brecht,
dramaturgo alemão, o pai da célebre frase, título de uma música na sua “Opera
dos três vinténs”, uma peça de 1928. Depois, as referencias são imensas,
perdem-se, sucedem-se, sobram: de músicas dos Da Weasel a filmes desconhecidos onde
um jovem Patrick Dempsey passa por temerosas dúvidas existenciais, inúmeras são
as representações artísticas com queixas sobre os dias que temos que enfrentar
antes de que chegue o nosso fim.
A
vida é um presente. Não se sabe quem foi a primeira pessoa a dizê-lo. Certamente
o avô de alguém, mas também Jack Dawson em “Titanic”, numa magnífica ode ao
sentido que existe em viver o dia-a-dia. Já Eleonor Roosevelt defendia o mesmo,
sendo-lhe atribuída a frase “today’s a gift, that’s why it is called the
present”.
“La
vida es un regalo”. Era também esse o título do livro que María de Villota
apresentaria esta segunda-feira, em Madrid. Nele, palavras que resumem uma
luta, que transformam um acidente gravíssimo em algo bom, e que nos levam a
sentir uma única verdade: às vezes, perder um olho permite-nos ver melhor do
que antes.
Os
sonhos e o sofrimento andam muitas vezes de mãos dadas. A espanhola soube isso
desde sempre. Filha de um ex-piloto de Fórmula 1, cedo quis seguir as pisadas
do pai, vivendo com o ruído dos motores e o cheiro a gasolina como pano de
fundo da sua infância. As bonecas ficaram penduradas nas estantes, repouso
tranquilo para o pó, substituídas pelos karts. Aos seis anos, competiu pela
primeira vez. Aos seis anos, conseguiu a primeira vitória. No entanto, cedo
soube também que teria que se esforçar o dobro para alcançar esses sonhos. Ser
mulher num mundo dominado pelos homens, onde os riscos espezinham as certezas,
onde ter talento muitas vezes pode não chegar, eram os obstáculos a superar.
Não para si.
Abraçou
a luta e subiu a pulso, fazendo uso não do nome mas dos genes. Competiu sempre,
em diversas categorias de monolugares, e quase sempre com êxitos. Primeiro na
F3 espanhola, depois nas 24 Horas de Daytona, na Euroseries 3000 e na
Superleague Fórmula, na qual representou o Atlético de Madrid. Acumulou records: foi vice-campeã de Espanha
na prova Fórmula Toyota (2001), a primeira mulher a participar na WTCC, na
Superleague Fórmula e a conseguir a pole position no campeonato Ferrari
Challenge (2005), e a primeira mulher espanhola a participar nas 24 horas de
Daytona.
Apesar
das contrariedades genéticas, das probabilidades quase nulas, dos olhares
desaprovadores, María alcançou o seu sonho: em Março de 2012, assinou como
piloto de testes da Marussia. O pior chegaria depois, em Julho do mesmo ano,
também como ponto de viragem na sua história. Sofreu um acidente durante a sua
primeira sessão de treinos no aeródromo de Duxford, no Reino Unido, e viu a
cara da morte. O embate fortíssimo contra um dos camiões da equipa provocou-lhe
sequelas graves, entre as quais a perda do olho direito e do olfacto, mas a
espanhola também no hospital mostrou ser feita de força.
Assimilou a ideia de que o seu aspecto físico
mudara para sempre, embora não tenha sido fácil. Perguntava-se quem a iria
querer com uma pala, acessórios que entretanto passaram a ser escolhidos
detalhadamente e de acordo com a roupa que vestia. Também foi gradual o
processo de assimilação do fim da carreira de piloto. “Salvamos-lhe a vida, mas
perdeu um olho”, disse-lhe o cirurgião que a operou após o choque. “Você
precisa das duas mãos para operar, eu sou piloto e preciso dos dois olhos para
conduzir”, respondeu-lhe María, sem aceitar o fim de algo pelo qual tanto
lutara, a quebra de um sonho, um guincho de desespero que presumia uma nova
vida. Entretanto, numa conferencia de imprensa, revelou ter agarrado a
oportunidade: “Apercebi-me de que vejo melhor do que antes. Antes, só via a
Fórmula Um. Agora, vejo que estou viva”.
Muitos
foram os ganhos que retirou da situação, numa tentativa sã de ver o lado bom de
todas as coisas: o respeito que conquistou entre os seus pares, um dos maiores.
“Sempre quis o respeito dos meus colegas e nunca o consegui na pista, na grelha
da partida. Consegui-o agora”.
Neste
espaço de tempo, dedicou-se a causas com três vértices: a dos automóveis, dos
quais nunca se conseguiu desligar, a dos doentes, entre quem se via, e a das
mulheres, numa luta organizativa que havia já começado em pista. Assumiu novos
desafios, porque só soube viver deles: a responsabilidade de ser directora da
Escola de Pilotos Emilio de Villota foi a génese, ser Embaixadora do Dia da
Mulher e Contra a Violência de Género o lucro, o Premio Honorifico da
Universidade Europeia de Madrid um reconhecimento. Acima de tudo, dedicou-se uma
causa com um vértice só: o da escrita do livro que, como lição de vida, quis
que fosse o seu maior legado.
Um
ano e três meses separam-nos do dia daquele acidente que tudo mudou. Este texto
deveria ser escrito como apresentação de “La vida es un regalo”. Foi escrito
porque a vida é uma puta, a de María foi-o muito, e porque depois se morre. Aos
33 anos, de causas naturais, num hotel em Sevilha, como uma machadada de
injustiça poética.
Sem comentários:
Enviar um comentário